16 de abr. de 2014

Brasil...

"Dilma, deixa eu te falar uma coisa!
Sou Fernanda Melo, médica, moradora e trabalhadora de Cabo Frio, cidade da baixada litorânea do estado do Rio de Janeiro.
Este ano completo 7 anos de formada pela Universidade Federal Fluminense e desde então, por opção de vida, trabalho no interior. Inclusive hoje, não moro mais num grande centro. Já trabalhei em cada canto...
Você não sabe o que eu já vi e vivi, não só como médica, mas como cidadã brasileira. Já tive que comprar remédio com meu dinheiro, porque a mãe da criança só tinha R$ 2,00 para comprar o pão.
Por que comprei?
Porque não tinha vaga no hospital para internar e eu já tinha usado todos os espaços possíveis (inclusive do corredor!) para internar os mais graves.
Você sabe o que é puxadinho?
Agora, já viu dentro de enfermaria? Pois é, eu já vi. E muitos. Sabe o que é mãe e filho dormirem na mesma maca porque simplesmente não havia espaço para sequer uma cadeira?
Já viu macas tão grudadas, mas tão grudadas, que na hora da visita médica era necessário chamar um por um para o consultório porque era impossível transitar na enfermaria?
Já trabalhei num local em que tive que autorizar que o familiar trouxesse comida ( não tinha, ora bolas!) e já trabalhei em outro que lotava na hora do lanche (diga-se refresco ralo com biscoito de péssima qualidade) que era distribuído aos que aguardavam na recepção.
Já esperei 12 horas por um simples hemograma. Já perdi o paciente antes de conseguir um mera ultrassonografia. Já vi luva descartável ser reciclada. Já deixei de conseguir vaga em UTI pra doente grave porque eu não tinha um exame complementar que justificasse o pedido.
Já fui ambuzando um prematuro de 1Kg (que óbvio, a mãe não tinha feito pré natal!) por 40 Km para vê-lo morrer na porta do hospital sem poder fazer nada. A ambulância não tinha nada...
Tem mais, calma! Já tive que escolher direta ou indiretamente quem deveria viver. E morrer...
Já ouvi muito desaforo de paciente, revoltando com tanto descaso e que na hora da raiva, desconta no médico, como eu, como meus colegas, na enfermeira, na recepcionista, no segurança, mas nunca em você.
Já ouviu alguém dizer na tua cara: meu filho vai morrer e a culpa é tua? Não, né? E a culpa nem era minha, mas era tua, talvez. Ou do teu antecessor. Ou do antecessor dele...
Já vi gente morrer! Óbvio, médico sempre vê gente morrendo, mas de apendicite, porque não tinha centro cirúrgico no lugar, nem ambulância pra transferir, nem vaga em outro hospital?
Agonizando, de insuficiência respiratória, porque não tinha laringoscópio, não tinha tubo, não tinha respirador?
De sepse, porque não tinha antibiótico, não tinha isolamento, não tinha UTI?
A gente é preparado pra ver gente morrer, mas não nessas condições.
Ah Dilma, você não sabe mesmo o que eu já vi! Mas deixa eu te falar uma coisa: trazer médico de Cuba, de Marte ou de qualquer outro lugar, não vai resolver nada!
E você sabe bem disso.
Só está tentado enrolar a gente com essa conversa fiada. É tanto descaso, tanta carência, tanto despreparo...
As pessoas adoecem pela fome, pela sede, pela falta de saneamento e educação e quando procuram os hospitais, despejam em nós todas as suas frustrações, medos, incertezas...
Mas às vezes eu não tenho luva e fio pra fazer uma sutura, o que dirá uma resposta para todo o seu sofrimento!
O problema do interior não é falta de médico. É falta de estrutura, de interesse, de vergonha na cara. Na tua cara e dessa corja que te acompanha!
Não é só salário que a gente reivindica. Eu não quero ganhar muito num lugar que tenha que fingir que faço medicina. E acho que a maioria dos médicos brasileiros também não.
Quer um conselho?
Pare de falar besteira em rede nacional e admita: já deu pra vocês!
Eu sei que na hora do desespero, a gente apela, mas vamos combinar, você abusou!
Se você não sabe ser "presidenta", desculpe-me, mas eu sei ser médica, mas por conta da incompetência de vocês, não estou conseguindo exercer minha função com louvor!
Não sei se isso vai chegar até você, mas já valeu pelo desabafo!"
(Fernanda Melo)

10 de abr. de 2014

Vitória


                " Selos e cartões no piano. Vidro do vaso no chão. As flores estão secas. A água manchou o carpete. A cortina rasgou. Janela estava aberta. Bateu e fechou. As notas estão desafinadas. Há ratos no porão. Uma das velas apagou. As outras estão derretidas. O frio entrou pela porta da frente. O tapete está dobrado. A madeira está carcomida. O tabaco acabou. O ópio também. Há ócio, porém.
                O brioche apodreceu. O queijo está no ponto. O vinho fermentou. A rolha caiu no chão. Rolou. Passou pela mesa. Passou pela cadeira. Passou pelas escadas. Parou na parede. A taça suja ao chão. Ainda inteira, possui rachaduras.
                A janela da cozinha, parcialmente aberta. Parcialmente consertada. Parcialmente de madeira. Sem vidro. Sem cacos. Sem pedaços. A parede, com frestas. A pia entupida. A pia encardida. Também carcomida. Pedra partida.
                Sa...pa...ti...nhos no chão. Cabem na minha mão. O caminho com pegadas. A trilha está errada. A cadeira pregada ao chão. Pequena decepção. Sa-pa-tinhos. Na minha mão.
                Há um bonnet rasgado no mancebo. Outrora tratado com zelo. Caixas com sebo. Janelas fechadas. Há medo!...
                A noite já foi embora, acalme-se agora. A luz do dia está por vir...
                Pode dormir."


Lady Viana